Mês em Música | Playlist de Janeiro 2020
Década nova, vida nova? Nos álbuns não, mas em canções, sem dúvida. Muitos dos singles da nossa Playlist de Janeiro revelam artistas que ocuparão o palco do decénio que começa.
A década arrancou como devia. Em ambiente de expectativa, preparação para o que aí vem. Parco em álbuns que possam chegar a fazer história, criar cultura, reunir consenso e conquistar corações (ou gerar dissensão e ataques cardíacos), pode-se ver pela nossa Playlist de Janeiro que este mês foi antes de tudo o tempo dos singles e anúncio do vindouro. Também foi a altura dos Grammys, para infelicidade dos Vampire Weekend que viram o seu Father of the Bride contemplado em tão coerente e meritória vizinhança. Se acontece a todos, até aos melhores, não seria mau lembrar os Arcade Fire, tomá-los como aviso, pôr a mão na consciência e arrepiar caminho.
Não faltam temas nesta Playlist de Janeiro capazes de entusiasmar qualquer um, com talento novo e antigo a transbordar por todos os lados, tanto do lado dos sintetizadores como do lado das guitarras. Comoção diante da dor do homem (Susanne Sundfør), tédio no dissipar-se do quotidiano (King Krule), sátira do desejo desenfreado (Sorry e Braids), na colecção de singles do mês com que a década arranca abundam sentimentos sofisticados e comentário social e existencial relevante. Quanto aos álbuns, se há seguramente registos que vale a pena conhecer – e por isso os destacamos aqui na nossa Playlist de Janeiro -, nenhum deles nos conseguiu arrancar das mãos a coroa de louros.
Playlist de Janeiro | Os singles
O nosso Single do Mês é a canção que marca o regresso de Westerman, quem sabe (esperemos!) com um álbum nas mangas, ainda por anunciar. “Blue Comanche” assinala o contrato de Will Westerman com a Partisan Records e evidencia, uma vez mais, o talento melódico subtil deste, em tudo discreto, britânico. Uma reflexão sobre o desastre ambiental, a canção revela a capacidade do seu autor de resistir à histeria, de olhar para o bem que apesar de tudo existe e criar uma sonoridade expressiva de um juízo ponderado.
Estes são tempos marcados por uma imensa politização da vida. Numa lenta substituição da argumentação por slogans indiscutíveis, começa a ser impossível ajuizar em tons de cinzento, num uso da razão onde não há lugar para diferenças de grau ou o reconhecimento da razão na parte contrária. Num clima assim, é refrescante ouvir alguém perceber o valor da moral (sem a qual não existe o artístico) e a sua independência face ao político, é um alívio ver alguém abraçar a calma, em vez de juntar mais uma voz irada à exaltação geral.
Nada disto seria contudo pertinente, não fora a “Blue Comanche” o resultado sensível desta posição de fundo. A nostalgia da melodia vocal é desconstruída por uma suave e permanente agitação que vem dos espaçosos e límpidos arpejos de guitarra, das notas salientes do baixo, dos crescendos do sintetizador. Vaga o suficiente para não ficar presa ao tema concreto que a inspirou, emerge uma tristeza atravessada de bonomia, o olhar maduro e equilibrado de quem sofreu e viveu para contar a história – a história interminável da procura de ser de todas as histórias: “I have been looking for an answer”.
Podem ouvir a versão de estúdio nesta nossa Playlist de Janeiro, mas para já deixamos aqui uma irresistível versão ao vivo, por mais razões (como poderão ver) do que apenas o tímido carisma de Westerman.
WESTERMAN | “BLUE COMANCHE” AO VIVO
Outro dos nossos destaques é o resultado da colaboração do produtor de música ambiente e eletrónica Williaris. K com a cantautora (e médica) Gordi, ambos artistas australianos em ascensão. É uma pena que “INDIFFERENT” tenha escapado à maioria dos radares, porque não só o piano e a produção são de uma tranquila, pungente melancolia, como a letra de Gordi é um poema de rara sensibilidade e originalidade de expressão.
Sobre ele dissemos o seguinte, por altura do seu lançamento: “Nada soa tão dolorosamente como a expressão insistente deste sentimento de insensibilidade no final da canção, a consciência de que “I’m indifferent to you”. Ao seu redor emerge a narrativa de uma relação a esboroar-se, de uma vida a desvanecer-se: “Even though we’re always tired/ Evidence my mind’s deleting/ This cannot be rewired”. Tudo termina no nada e no silêncio avassaladores da monotonia quotidiana: “All the stillness in all that repeats/ Seems to surface and wash over me”.
WILLARIS K & GORDI | “INDIFFERENT”
A outra canção que nos chamou particularmente a atenção e, uma vez mais, passou injustamente por baixo de todos os radares é a “Ego” dos Moaning. Qualquer fã das versões mais pesadas de synth pop e new wave, desde John Foxx aos Human League do tempo do Martyn Ware, apreciará esta abordagem fresca à sonoridade, bem como a substância dos versos. Será fácil lê-los como uma indirecta à actual tendência em eleger certos homens (escusado nomeá-los) para aquele lugar que só a Deus compete: “If God is real, you are not them”. Mas isso seria politizar um tema bem mais preocupado com a raiz do tecido comunitário na natureza dependente do eu: “We used to care, but we forgot/ Have more in common than we do not/ What part of you relates to me/ Narcissism is not empathy”. Ainda assim, por entre a declaração moral de intenções, Sean Solomon dá um dos melhores conselhos políticos que ouvi ultimamente: “It’s easier to complain/ But there is beauty in the mundane”. Pensando bem, é precisamente o que Westerman já nos dissera. Mais beleza, menos poder. Ou melhor ainda, menos poder na beleza.